- Diário da Marina
- Posts
- Você - realmente - entende o que lê?
Você - realmente - entende o que lê?
Sobre o que consumimos e os recentes casos de racismo na comunidade literária

Octavia E. Butler é uma das minhas autoras favoritas da vida. Hoje conhecida como “a grande dama da ficção científica”, ela abre um de seus livros mais famosos, Kindred, publicado aqui no Brasil pela editora Morro Branco, com uma frase extremamente pessoal e que, antes mesmo da história começar, já me colocou para pensar:

“Comecei a escrever sobre poder porque era algo que eu tinha muito pouco.”
Ela não precisaria se explicar, mas o fez mesmo assim em muitas entrevistas. Em uma delas, que pode ser encontrada no livro A Parábola do Semeador (o meu favorito), Octavia diz:
“Eu nunca contei histórias comuns para mim mesma. Nunca estive interessada em fantasiar sobre o mundo no qual estava presa. Na verdade, fantasiava sobre fugir daquele mundo limitado e sem graça. Eu era uma menininha ‘de cor’ naquela era de conformidade e segregação, os anos 1950, e não importava o quanto eu sonhasse em ser escritora, não podia deixar de ver que meu futuro real parecia sombrio. (…) E a ficção científica e a fantasia são tão vastas que eu nunca tive que deixá-las para poder lidar com outras coisas. Não parece ter nenhum aspecto da humanidade ou do universo ao nosso redor que eu não possa explorar.”
As histórias de Octavia são potentes e, quase sempre, incomodam o leitor. Ela põe o dedo na ferida, sem se importar com o que vai perturbar dentro de nós, porque trata de temas que não combinam com indiferença.
Afinal, quem calaria e consentiria com racismo? Escravidão? Violência de gênero?
Sou uma mulher branca, publicada em editora tradicional, e reconheço meus privilégios tanto quanto tenho noção da extensão do meu “poder” no meio literário - que, apesar de bem pequeno, não deixa de ser um tipo de poder.
E reconhecendo isso, acompanhada por Octavia, que tanto admiro e escolhi trazer como fio condutor desse devaneio em forma de texto, é que me volto para os casos de racismo e preconceito literário que aconteceram nas últimas semanas.
Quem tem o hábito de ler sabe que palavras, quando dispostas em uma certa ordem, podem significar muito mais do que o dicionário indica. O ato de escrever, por si só, carrega uma dupla intenção: essa imediata das palavras usadas, e a de quem escreve, mais oculta. Quando colocamos nossas palavras no mundo, portanto, colocamos também nossa intenção de confortar, acolher, distrair, divertir, ferir ou diminuir.
E essa intenção pode até se autointitular “boa” no começo, nada além de um vídeo aparentemente inofensivo dizendo que pessoas que não diversificam leituras “emburrecem”, mas nossas escolhas têm significado, ainda que em uma simples thumb. E aqui, não vale invocar o velho ditado de “só sou responsável pelo que digo, e não pelo que você entende” porque dentro desse lugar de poder do meio literário tem gente com muito poder. Poder de influenciar; poder de ditar tendências; poder de enterrar carreiras ou alavancar um livro.

Trecho de Kindred, página 164.
A máxima que parece reger o nosso mundo - literário - é a de não mexer com quem é maior do que nós. De não polemizar e não nos indispor - afinal, isso pode fechar portas em um mercado onde, no geral, a gente tem que se espremer pela janela para conseguir entrar.
Mas ai eu te pergunto: até onde o nosso silêncio diante de absurdos não nos torna tão responsáveis quanto pessoas que usam palavras - e sua influência - para ferir?
Só nas últimas semanas, vimos situações absurdas ressurgirem no meio literário. Contas no Pinterest que pegam ilustrações comissionadas por autores nacionais e, sem qualquer autorização, colocam essas imagens em ferramentas de Inteligência Artificial para embranquecer personagens racializados para “enaltecer a beleza branca”. Uma autora negra que foi questionada sobre o que fez para “ajudar” pessoas negras em pleno 20 de novembro. Uma criadora e pesquisadora negra que fez um desabafo exausto e sensível sobre o mercado e acabou sendo ameaçada de processo por colegas…
São essas as ações de uma comunidade que se acha tão inteligente?
Não sou nenhum bastião de moral, e defendo que a literatura não deve sempre ocupar esse lugar de nos ensinar algo, em especial a ficção. Se você quer se educar sobre determinado tema, então pegue um livro de estudo, não Corte de Espinhos e Rosas.
Mas é curioso como tantos livros de ficção escritos por mulheres, para um público predominantemente feminino, me ensinaram lições valiosas. Os romances e romantasias, que tantos enchem a boca para criticar, é que me ajudaram a enxergar as pequenas nuances de um relacionamento abusivo. Foi com uma romantasia que eu primeiro conheci o amor romântico e com uma fantasia que eu vi como o amor próprio pode ser transformador.
Octavia E. Butler é o tipo de escritora que parece ter nascido para mudar o mundo. Suas histórias são um convite à reflexão, mas a verdade é que qualquer história pode nos colocar para refletir, mesmo essas que dizem por aí que “emburrecem”.
Já não é de hoje que pessoas racializadas denunciam preconceito e racismo no nosso meio. Na verdade, estão cansadas de falar e falar sem ter ninguém que as ouça. E diferente do que se alega por aí, essas pessoas não têm o dever de se pronunciar sobre nada, nem de ensinar nada para o resto de nós, pessoas brancas.
Cabe a nós extrair dos livros que lemos, das músicas que ouvimos, dos filmes e séries que assistimos, e do meio em que vivemos, o necessário para não sermos preconceituosos e cúmplices de quem é.
Como muito bem escreveu Octavia em uma das minhas passagens favoritas de A Parábola do Semeador:
“Tudo o que você toca, você muda. Tudo o que você muda, muda você. A única verdade que persiste é a mudança.”
A mudança, às vezes, exige palavras duras e responsabilização. Se nós, participantes da comunidade literária, não questionarmos o status quo, então os absurdos que vimos nas últimas semanas nunca vão parar. E eles precisam parar.
Por isso, nesse final de devaneio, eu te convido a pensar: quando você leu Kindred, notou que a história não era só sobre viagem no tempo, ou parou por aí mesmo?
Não importa o que você lê, e sim o que entende do que lê.
E se você quiser acompanhar pessoas incríveis - e diversas - que realmente mudam o mundo, aqui estão alguns dos meus perfis favoritos:
Essa página do Diário da Marina está relacionada aos eventos lamentáveis de racismo e preconceito que aconteceram em novembro de 2025. Como não compactuo com exposição apenas por likes, optei por não expor os nomes da autora e da influenciadora vítimas de racismo, pois seus trabalhos devem ser reconhecidos para além das violências que sofreram.
Racismo não é treta nem fofoca. Racismo é crime.



